sábado, outubro 01, 2016

Fantasia

Lembro exatamente dos dias que se seguiram à minha primeira leitura marcante. Eu tinha apenas doze anos de idade, ainda vivendo naquele limiar entre o utópico mundo das possibilidades insanas e a sórdida e complexa realidade. Foram três dias de leitura intensa, devorando páginas e páginas no meio da aula, na hora das refeições e até antes de tomar banho, adiando o momento de ligar o chuveiro enquanto não finalizasse um capítulo. Quando terminei, não engatei imediatamente no volume seguinte – isso era exigir demais de uma criança que nem tinha a leitura como hábito ainda. Mas a todo momento pensava no enredo, e acredito que tenha passado duas semanas me perguntando se meu colega de sala que andava bamboleando por ter problemas musculares nas pernas poderia ser um sátiro.

Como você deve ter imaginado, o primeiro livro que me cativou de verdade foi Percy Jackson e os Olimpianos. Hoje em dia reconheço que a literatura de Rick Riordan não propõe muita reflexão e nem possui grande ambição, assim como seus livros de modo geral retratados nesse universo. Mas foi uma saga que me enlouqueceu porque me fez imaginar – e sonhar – com um mundo em que a realidade de Percy era tangível. Quero dizer, de repente parecia muito possível que o meu mundo fosse povoado por criaturas fantásticas e mitológicas, as mesmas criaturas da mitologia greco-romana que sempre me fascinaram durante a minha infância. Um dia eu tive de crescer, mas durante aquela minha tenra idade o mundo foi muito mais fácil de encarar do que é hoje em dia.
É por isso que a fantasia é, ao mesmo tempo, tão maravilhosa e tão cruel. Você não pode permitir que uma criança cresça sem ter contato com elementos fantásticos, você não pode arrancar delas essa oportunidade. Seja através de filmes da Disney, histórias em quadrinhos, episódios de Dragon Ball Z, jogos como Pokémon ou as adaptações de Harry Potter, esse contato é importante. As noções que você tem hoje de amizade e lealdade podem muito bem ter sido influenciadas por J. K. Rowling ou Akira Toryiama. Você pode ter escolhido sua profissão atual porque alguma dessas coisas fantásticas que você vivenciou acabaram por marcá-lo. Somos hoje em dia o que vivemos (e lemos) no nosso passado, e se você ainda não é o que vivenciou, com certeza deseja ser.


QUANTAS VEZES VOCÊ NÃO QUIS PARTICIPAR DESSAS AMIZADES OU DESEJOU TER AMIGOS ASSIM?

Certo, mas até agora só falei da fantasia e seu lado maravilhoso. Por que ela seria cruel? A resposta é simples: a realidade a torna cruel. É doloroso descobrir que o Papai Noel nunca existiu, que a Fada dos Dentes não é real e que sátiros só podem servir xícaras de bebida quentinha nas histórias de ficção fantástica – pelo menos foi para mim. Sei que isso faz parte do crescimento de todos nós como pessoas, mas duvido que você saiu gritando de alegria por aí quando finalmente percebeu que jamais receberia uma cartinha de Hogwarts ou que o Acampamento Meio-Sangue não fica escondido entre os campos de morango ao norte de Long Island (ou talvez fique, nunca conheci um semideus para perguntar).

Os primórdios da fantasia
Em muitos textos que já li, sempre há a relação do gênero fantástico com os conos de fadas... Mas a fantasia começa muito antes: na verdade, para entendê-la como um todo devemos retornar lá para os séculos VII e VIII a.C., quando a Odisseia e Ilíada firmaram sua existência através de textos escritos, cuja criação é atribuída a Homero – embora se saiba que a Odisseia existia muito antes do filósofo nascer, na forma de narrativas orais transmitidas de geração em geração. À época, viver na Grécia e ter contato com aquela mitologia era como se hoje em dia lêssemos Poe e Lovecraft e encarássemos seus monstros como reais. Devia ser no mínimo assustador (e também um pouco excitante) acreditar que cada uma das narrativas era perfeitamente possível e tangível mesmo no mundo real.
Mitos, afinal, sempre foram necessários para explicar a origem do mundo quando não éramos avançados o suficiente para compreendê-lo – não que sejamos hoje em dia, né? Tudo precisava de uma explicação, e se não tínhamos nenhuma racional, apelar para o irracional sempre pareceu a melhor saída. É assim até hoje, se você parar para pensar. Não são poucas as vezes em que vemos notícias trágicas por aí, de gente fazendo o que nos parece tão impossível e cruel, e comentários atribuindo a atitude ao misterioso, sobrenatural e fantástico. O mito é tão importante e tão presente que constantemente esbarra em nossas vidas – e influenciou grandes nomes do terror fantástico, como Mary Shelley e seu fascínio pela história do titã Prometeu, por exemplo, que a inspirou a escrever Frankenstein.


Titã, a cujos olhos imortais 
As dores dos mortais 
Mostram-se em sua crua realidade, 
Como algo que os próprios deuses vêem, 

Que prêmio mereceu tua piedade? 

Um profundo e silente sofrimento, 

O abutre, a corrente, a rocha, 

E o orgulho de sofrer sem um lamento.
MARY SHELLEY

Depois, claro, tivemos os contos de fada. Embora hoje sejam todos muito bonitinhos e fofos, não foi com essa intenção que surgiram. Aliás, você sabia que a palavra fada vem do latim fatum, que significa fatalidade? Pois é. Se você vivesse na Europa do Século V, dificilmente contaria essas histórias para seus filhos antes de dormir: elas continham doses desmesuradas de incesto, violência, canibalismo, mortes tenebrosas e até estupro. O propósito era entreter, provocando medo, náuseas e horror em seus ouvintes, utilizando o nosso fascínio natural pelo mórbido e pelo doentio como combustível para incrementar fantasias que já eram desumanas. Não estavam ali para encantá-lo ou ensinar lições de moral, nem nunca estiveram.
Os contos de fadas, que não eram conhecidos assim durante a Idade Média, atravessaram o Renascimento, encontrando espaço inclusive em obras famosas de Shakespeare – Sonhos de Uma Noite de Verão, por exemplo, tem duendes e fadas. Já nessa época haviam perdido um pouco de sua essência original, até que na França do século XVII abandonaram-na de vez ao encontrar Charles Perrault. Os irmãos Jacob e Willhelm Grimm, cem anos depois, reuniram os contos originais e republicaram – o que faz muita gente pensar que eles são os criadores dessas versões macabras, aliás. No final, a conclusão que tiramos é que não importa a sua idade, você pode ser criança ou ter as próprias crianças: os contos de fadas continuarão a fascinar todo mundo, sejam os originais ou suas releituras mais amenas. Por quê? Porque a fantasia sempre irá nos cativar.

EM UMA VERSÃO ANTERIOR À PERRAULT, A CHAPEUZINHO VERMELHO DANÇA STRIP TEASE PARA O LOBO ANTES DE CONSEGUIR FUGIR. EM OUTRA, DESAVISADA, COME A PRÓPRIA AVÓ NUMA SOPA.

Não menos importante que a mitologia grega, temos as lendas e o folclore de modo geral. Um grande nome da alta fantasia adorado até os dias atuais, J. R. R. Tolkien se inspirou neles para escrever sua famosa trilogia O Senhor dos Anéis – especialmente nas mitologias nórdica, irlandesa e germânica. Enquanto a supracitada obra tem um aspecto mais adulto, por ser complexa e minuciosa, do outro lado temos O Hobbit e Mestre Gil de Ham (essas últimas, literatura para todas as idades, cativando desde crianças até seus avôs). Claro que Tolkien escreveu outros livros além dos mencionados, mas estes são os mais conhecidos e provam o ponto em que quero chegar: o gênero fantástico está sempre se reinventando, crescendo conosco conforme envelhecemos, mas isso não significa que os livros “antigos” serão esquecidos – na verdade eles só abrem espaço para que outros se apertem logo ao lado. Se tem uma coisa que eu descobri depois que comecei a ler, é que meu coração é grande o suficiente para abarcar todas as obras que deixaram e que deixarão uma marca em minha vida.



O amadurecimento da fantasia

Como mencionei anteriormente, conforme você cresce, a sua necessidade de consumir uma fantasia mais madura aumenta. A sua estante pode até acumular livros que leu na infância, mas sem dúvidas ganha novos títulos mais complexos esporadicamente. Nada anormal porque, afinal, você cresceu. Explicar as coisas apenas com magia talvez não funcione tanto como antigamente. Quando a gente começa a ser mais racional, a ter uma compreensão mais ampla do que está ao nosso redor, exigimos também respostas mais concretas e sólidas. Não nos contentamos com aquele irritante “porque sim”. Até mesmo o aspecto fantástico tem que ter um sentido dentro do mundo em que foi criado.
Alienígenas invadindo Westeros. Apenas imagine. Improvável? Sim, mas não impossível. Escrever fantasia abre um leque de possibilidades impossíveis (percebe o paradoxo?). Usar um raciocínio mínimo é escolha do criador desse universo. Nessas horas é legal pensar que você pode criar o que quiser, viajar na maionese e deixar sua mente alçar níveis insanos de imaginação – só mantenha a coerência. Por favor. Não exagere no deus ex machina (exceto se você for um escritor incrível, e ainda assim correrá o risco de soar forçado).

SE INVADISSEM, APOSTO QUE TYRION CONSEGUIRIA ENGANÁ-LOS, DE QUALQUER FORMA.

Fazendo outro paralelo, se imagine conhecendo Hogwarts aos nove anos de idade. Agora pense que Rowling, de uma maneira não muito justificada, colocou na trama a existência de divindades gregas regendo o universo dos bruxos. Bizarro, não? Mas você não questionaria nada disso aos nove anos de idade. Se hoje em dia você afirma que questionaria sim, então é isso que quero dizer com amadurecimento da fantasia – é basicamente o seu amadurecimento. É você crescer com os personagens até certo ponto, e daí em diante sentir a necessidade de ir mais longe. Claro, sem esquecer, com uma pitada de nostalgia, aqueles que foram importantes para você.
Hoje em dia ainda olho para os livros do meu passado com carinho, mas não posso ignorar o fato de que eles não são o suficiente para saciar minha sede literária. Leio MartinRothfussWeeksBrettLawrenceTolkien e pretendo ir mais além, acrescentando à lista um sem-número de autores renomados com os quais sou bombardeada por amigos, leitores e editores também. Não sei se daqui a vinte anos estarei ainda acompanhando esses autores de perto, embora imagine que sim, mas tenho certeza absoluta que não irei esquecê-los.

Mas e você, o que o tem cativado ultimamente? E qual a obra que nunca vai sair do seu coração?



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